Os filhos mais velhos do ex-Presidente angolano, José Eduardo dos Santos, alguns dos quais na mira da selectiva justiça imposta por João Lourenço, defendem uma lei de amnistia geral e o “fim dos processos judiciais e institucionais contra muitos angolanos”.
Numa carta em que expõem a sua posição quanto à celebração de um funeral nacional para o pai, que propõem que se realize só depois das eleições (ver texto do Folha 8 “FUNERAL (DIGNO) SIM… DEPOIS DAS ELEIÇÕES”), os cinco filhos mais velhos do ex-Presidente dizem também que “chegou o momento de pedir desculpa” e pôr fim aos processos judiciais.
Alguns dos filhos de José Eduardo dos Santos, nomeadamente a mais velha, a empresária Isabel dos Santos e o seu irmão José Filomeno dos Santos “Zenu”, bem como colaboradores próximos do ex-Presidente (como o foi na mesma altura o próprio general João Lourenço), como os generais “Dino” e “Kopelipa” enfrentam processos nos tribunais angolanos, o que é visto como uma justiça selectiva e, igualmente, acerto de contas propriamente ditas.
O Presidente João Lourenço, que recebeu o poder das mãos de Eduardo dos Santos e tomou posse em Setembro de 2017, elegeu como escudo de protecção do seu próprio passado a luta contra a corrupção, pondo os tribunais a neutralizar todos aqueles seus colegas, e respectivos familiares, que beneficiaram mais do que ele na ladroagem levada a cabo durante os 38 anos de cleptocracia de Eduardo dos Santos.
Na carta assinada por Isabel, José Filomeno “Zenu”, Welwitschea “Tchizé”, Joess e José Eduardo Paulino “Coreon Dú”, os filhos salientam que José Eduardo dos Santos se retirou voluntariamente dos assuntos públicos, implementando os “mecanismos para uma mudança democrática e pacífica de liderança” mas essa transição foi assassinada por João Lourenço que, aproveitando a inicial popularidade que conseguiu e o apoio internacional, tratou de apunhalar pelas costas o seu patrono e mentor.
No entanto, escrevem, “em vez de uma reforma pacífica e merecida, enfrentou silenciosamente ataques que visavam destruir a sua imagem e o seu trabalho político e social”, uma injustiça que “levou à divisão da sociedade e ao enfraquecimento do país”.
“Para restaurar a unidade e a harmonia nacional, chegou o momento de pedir desculpa e de reparar os danos causados ao incansável Arquitecto da Paz [José Eduardo dos Santos]”, sugerem os cinco subscritores da carta em que mostram e demonstram quão vil é a estratégia, igualmente cleptocrática e esclavagista, de João Lourenço.
Aferem, por isso, que a consolidação do legado político do que apelidam de “Pai da Nação” exige a adopção de uma lei de amnistia geral e o fim dos processos judiciais e institucionais contra muitos angolanos.
“Todos devem ser convidados a participar activamente e a dar o seu melhor para a construção do seu país, Angola”, escrevem os cinco filhos mais velhos, apelando ao respeito pelo luto e comprometendo-se a colaborar na realização de um funeral nacional após as eleições.
Actualmente, Isabel dos Santos enfrenta processos cíveis e criminais em Angola onde em Dezembro de 2019, o Tribunal Provincial de Luanda decretou o arresto preventivo de contas bancárias suas, do seu marido, o congolês Sindika Dokolo (entretanto falecido), e do português Mário da Silva, e de várias empresas nas quais detém participações sociais, por alegados negócios que terão lesado o Estado angolano em valores superiores a cinco mil milhões de dólares (4,87 mil milhões de euros).
Recorde-se que muitos dos negócios de Isabel dos Santos tiveram a cobertura legal do Governo angolano, presidido pelo seu pai, merecendo a servil e canina concordância dos ministros em funções, entre os quais figurava o da Defesa, de seu nome João Lourenço.
A empresária vive fora de Angola há vários anos, tal como a sua irmã Tchizé, ex-deputada do MPLA (partido no poder há 46 anos) e detentora de vários negócios em Luanda, cujo mandato foi suspenso em 2019, devido a ausências prolongadas e reiteradas nas reuniões plenárias, que justificou com o facto de ser vítima de perseguição e ameaças de morte. Foi expulsa do MPLA sem ter direito a defesa. Parafraseando João Lourenço, se “haver” necessidade, use-se a tese do assassino Agostinho Neto que, em Maio de 1977, aconselhava a não se perder tempo com julgamentos.
“Zenu”, ex-presidente do Fundo Soberano de Angola, aguarda em liberdade a decisão sobre o recurso que interpôs para se livrar da sentença de cinco anos de prisão a que foi condenado, em 2020, por burla e defraudação, peculato e tráfico de influências, no âmbito do caso conhecido como “500 milhões de dólares”.
Mais recentemente, foram notificados, no mesmo dia em que José Eduardo dos Santos morreu, dia 8 de Julho, numa clínica em Barcelona, os generais “Dino” e “Kopelipa” acusados de vários crimes entre os quais os de peculato, associação criminosa e branqueamento de capitais, num processo que envolve várias empresas, entre as quais a petrolífera Sonangol, empresa criada pelo MPLA e cuja missão foi transformar (o que fez com êxito) o MPLA num dos partidos mais ricos do mundo.
Na sua última deslocação a Angola, o ex-Presidente José Eduardo dos Santos pediu à Procuradoria-Geral da República para ser ouvido no âmbito deste processo, sem obter resposta das autoridades.
Recorde-se que o Presidente da República, também presidente do MPLA e Titular do Poder Executivo, desafiou, numa entrevista ao jornal português Expresso, o seu ex-patrono e mentor, José Eduardo dos Santos, a denunciar os corruptos. Para João Lourenço, são esses os traidores da pátria. E esses são apenas os que não estão ainda rendidos aos encantos do novo “querido líder”…
É claro que João Lourenço é, também no contexto angolano mas sobretudo do MPLA, uma figura impoluta, íntegra e honorável que nada tem a ver com traidores ou corruptos. Desde logo porque é um general e um político que chegou a Angola há meia dúzia de dias. Há até quem diga que, afinal, ainda não chegou…
Daí para cá a história deste impoluto, íntegro e honorável general é bem mais conhecida. Importa, contudo, reter a comprovação factual de que João Lourenço nunca ouvira falar de corrupção, mesmo sendo ministro da Defesa de José Eduardo dos Santos desde 2014 e vice-presidente do MPLA.
Está, por isso, acima de qualquer suspeita. Na verdade, como é que alguém que aos 20 anos de idade (1974) entrou para o MPLA e fez toda a sua vida nas fileiras do partido poderia ter notado, constatado, verificado ou comprovado que existia corrupção no seio do MPLA e do Governo? Não podia…
João Lourenço diz esperar que a impunidade “tenha os dias contados” em Angola. Insiste na “moralização” da sociedade angolana. Estará a ser ingénuo, imprudente, suicida, estratega ou traidor? Se calhar, fazendo a simbiose de tudo isto, está apenas a gozar com a nossa chipala e fazer de todos nós… matumbos.
O Presidente diz ser necessária a “moralização” da sociedade, com um “combate sério” a práticas que “lesam o interesse público” para garantir que a impunidade “tenha os dias contados”.
É verdade. Mas é verdade há muitos anos e a responsabilidade é do MPLA, partido no qual João Lourenço “nasceu”, cresceu, foi e é dirigente. Então, durante todos esses anos (46), o que fez João Lourenço para combater as práticas que “lesam o interesse público”?
“No quadro da necessidade de moralização da nossa sociedade, importa que levemos a cabo um combate sério contra certas práticas, levadas a cabo quer por gestores quer por funcionários públicos. Práticas que, em princípio, lesam o interesse público, o interesse do Estado, o interesse dos cidadãos que recorrem aos serviços públicos”, disse João Lourenço.
Sendo uma verdade de La Palice, como tantas outras que constituem o ADN do partido do qual é presidente, é caso para perguntar se só agora é que João Lourenço descobriu a pólvora?
Ou será que só agora é que João Lourenço descobriu que Angola é um dos países mais corruptos do mundo? Que é um dos líderes mundiais da mortalidade infantil? Que tem 20 milhões de pobres?
Folha 8 com Lusa